O
que é governamentalidade?
É
um conceito inventado pelo filósofo Michel Foucault para analisar
genealogicamente como ocorreram os processos históricos que transformaram a
questão política da soberania real em governo estatal na modernidade.
Sendo mais específico, é possível designar três coisas por governamentalidade.
Primeiro,
o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões,
cálculos e táticas que permitem exercer uma forma bem específica e complexa de
poder. Tal poder tem a população como alvo principal, a economia política como
forma de saber mais importante e os dispositivos de segurança como instrumentos
técnicos. A “arte de governar” da maneira como se apresenta na
modernidade altera-se em dois aspectos principais. O soberano (Rei, Imperador
ou Príncipe) coloca em segundo plano o uso da violência e da autoridade para
garantir seu respeito e reconhecimento pelos súditos e para defender seu
território, e o modelo de governo deixa de aplicar-se a família para a
população.
Todavia,
a família será o núcleo principal dentro da população para o qual se reportará
as táticas de governo que pretendem obter ações da população – comportamento
sexual, (des)estímulo da taxa de natalidade, demografia, planos de consumo. Por
isso, há na modernidade (séc. 16) a criação de instituições como escolas,
hospitais, prisões, hospícios, asilos que – aliadas às mais antigas, como a
família – irão propiciar uma série de ferramentas para o controle, tornando
as pessoas sãs e aptas para o trabalho, consumo e reprodução e, ao
mesmo tempo, garantindo instrumentos para que a população se governe. É preciso
que existam práticas de governo das pessoas por elas mesmas – diminuindo e
despersonalizando “a autoridade do grande governante”. Assim, o pai de família,
o superior de um convento, o pedagogo e o professor em relação com a criança,
cumprem papéis para que o governo seja algo imanente à sociedade e não venha de
maneira exterior ou de cima para baixo das mãos do Soberano, do presidente, do
“Estado-monstro”...
Michel
Foucault (1926-1984)
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Até
então, a economia tinha um sentido diferente do que tem hoje. Significava o
governo da casa ou da família. Ou seja, se referia ao papel administrativo
desempenhado pelo chefe de família para garantir a provisão desta: riquezas,
bens, propriedade, novos integrantes, alianças com outras famílias,
comportamento dos membros etc. A “arte de governar” que aparece na literatura
moderna, contra a soberania do Príncipe exercida sobre o principado
(anti-Maquiavel), pretendia seguir o modelo da família, portanto, a questão era
como introduzir esta no interior do Estado. Então, opera-se uma mudança para
afastar-se de Maquiavel que defendia que o objeto para o qual se destinava o
poder soberano era o território e as pessoas que habitavam esse território. Na
literatura anti-Maquiavel (Adam Smith, por exemplo) trata-se de governar não o
território nem os homens que nele moram, mas as coisas. Que coisas? “Os homens
em suas relações, seus laços, seus emaranhamentos com essas coisas que
são as riquezas, os recursos, as substâncias, o território, com certeza, em
suas fronteiras, com suas qualidades, seu clima, sua aridez, sua fertilidade;
são os homens em suas relações com essas outrascoisas que são os
costumes, os hábitos, as maneiras de fazer ou de pensar e, enfim, são os homens
em suas relações com outras coisas ainda, que podem ser os
acidentes ou as desgraças, como a fome, as epidemias, a morte” (FOUCAULT, 2006,
p. 290).
Tem-se
então uma descoberta. Destas coisas é possível extrair uma ciência: cálculos,
estatísticas, projeções, curvas demográficas, quantidade de produção. Neste
momento o conceito de “economia” começa a mudar de sentido e passa a significar
esse nível de realidade que conhecemos hoje, esse saber especializado, uma
disciplina. Com isso, torna-se de importância cabal para a política, que será
em tal momento à disposição das coisas (economia política). Mas, e o governo
dos homens, como fica? Os homens também podem e são tornados “coisas”,
entendendo aqui o sentido que construirão através das relações que
tiverem: o homem vira sujeito a partir da ação que pratica e
quando esta se encontra com o saber sobre esse tipo de ação. Esse saber detém
uma determinada estratégia para lidar com a situação.
Por
exemplo, um homem qualquer rouba uma loja e assassina o dono. Sem um saber
chamado Justiça Criminal esse homem é simplesmente “um homem que roubou e
matou”. Se ninguém descobrir o acontecido ele só será “isso” (alguém que matou
e roubou) para ele mesmo e de acordo com sua consciência. Mas se alguém que
“aceitar legítimo” a Justiça Criminal, ou um representante direto dela, pegá-lo
em flagrante e denunciá-lo, ele será um suspeito de latrocínio (roubo seguido
de morte) e levado a julgamento. A partir daí, a opinião pública motivada pelos
veículos de tevê podem “sujeitá-lo” – torná-lo sujeito –, “ele é criminoso”,
vão dizer. Depois de sua condenação, então ele será também outro sujeito, além
de criminoso, agora presidiário. Diante de outro saber, co-extensivo ao
criminal, a Justiça Penal, ele será um sujeito criminoso, presidiário,
condenado – um homem que praticou um crime contra o patrimônio e contra a vida
e foi julgado e condenado. Como presidiário ele se torna um sujeito e objeto,
pois está passível de receber o tratamento adequado de acordo com um tipo
de saber da esfera penal. A relação o fez tornar-se sujeito-objeto ao
qual o governo dispõe coisas: direito à escola, ao trabalho, ao psicólogo, ao
médico para que ele se “recupere” e reintegre o convívio. O cidadão-comum, ou
representante da lei que denunciou o homem que cometeu o roubo-assassinato,
está tão “governamentalizado” quanto o presidente da república, pois um
determinado saber que pronuncia “quem comete um ato desses deve ir para a
cadeia”, o penetrou – são os chamados micro-poderes que nos
governam e nos fazem governar. Mas isso não significa que este
“dedo-duro” aja de outra maneira em uma situação parecida, por isso Foucault
prefere tratar os sujeitos como não cristalizados ou essencializados, mas
produzidos de acordo com a ação que praticam.
Essa
longa digressão foi importante para deixar os outros termos relacionados à
“governamentalidade” mais claros, tendo em vista que eles se entrecruzam.
Seguindo... Segundo, é a tendência no Ocidente que não pára de conduzir em
direção ao relevo (acúmulo) desse tipo de saber que se pode chamar de “governo”
sobre os outros: soberania, disciplina. Isso levou toda a uma série de
aparelhos específicos de governo e também de saberes. Pode ser entendido como
uma espécie de racionalização (relativo à razão) nas sociedades ocidentais o
processo de inscrição do governo, transmitido e vivenciado, nos hábitos e nos
costumes. Há um certo tipo de circularidade entre os governos moral, econômico
e político. Sendo que o primeiro está ligado ao governo de si mesmo,
o segundo a família e o terceiro ao Estado. Estes
governos dialogam, se chocam, se interligam, havendo várias modalidades de
governo dentro do âmbito social, que não é diretamente controlado do alto do
controle político de um país. Aliás, Foucault chama atenção para o que dá
sustentação ao “poder político”: são os outros poderes, que só podem ser
separados esquematicamente. O surgimento do Estado como entendemos hoje, é
apenas um desdobramento destes outros poderes, sem os quais não seria possível
a existência do Estado. Por isso, o interesse de Foucault, em suas últimas
obras, sobre o sujeito-ético, ponto-chave para qualquer proposta de alteração
macro-política. O poder deixa de ser uma interdição, uma repressão e uma
negação, como é entendido pelas principais análises nas humanidades, e passa a
significar uma positividade.
Terceiro,
e último, governamentalidade é o resultado do processo pelo qual o Estado de Justiça
da Idade Média, tornado Estado Administrativo nos séculos 15 e 16,
encontrou-se, pouco a pouco, “governamentalizado”. A genealogia do
Estado de governo, que tem a população como seu alvo e exerce seu poder
através dos dispositivos de segurança, pode ser desenvolvida em três limiares
(começos): a pastoral cristã, a nova técnica diplomática-militar e a polícia
(p. 305). Mas isso é assunto para outro momento!
Referências:
FOUCAULT,
Michel. A “Governamentalidade”. In:______. Estratégia, poder-saber:
ditos e escritos, vol. IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p.
281-305.
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