Zygmunt Bauman
"Vivemos tempos líquidos. Nada é
para durar"
Sociólogo polonês cria tese para justificar atual
paranoia contra a violência e a instabilidade dos relacionamentos amorosos
Adriana Prado
O sociólogo polonês radicado na
Inglaterra Zygmunt Bauman é um dos intelectuais mais respeitados e produtivos
da atualidade. Aos 84 anos, escreveu mais de 50 livros. Dois dos mais recentes,
“Vida a crédito” e “Capitalismo Parasitário” chegam ao Brasil pela Zahar. As
quase duas dezenas de títulos já publicados no País pela editora venderam mais
de 200 mil cópias. Um resultado e tanto para um teórico. Pode-se explicar o
apelo de sua obra pela relativa simplicidade com que esmiúça aspectos diversos
da “modernidade líquida”, seu conceito fundamental. É assim que ele se refere
ao momento da História em que vivemos. Os tempos são “líquidos” porque tudo
muda tão rapidamente. Nada é feito para durar, para ser “sólido”. Disso
resultariam, entre outras questões, a obsessão pelo corpo ideal, o culto às
celebridades, o endividamento geral, a paranóia com segurança e até a
instabilidade dos relacionamentos amorosos. É um mundo de incertezas. E cada um
por si. “Nossos ancestrais eram esperançosos: quando falavam de ‘progresso’, se
referiam à perspectiva de cada dia ser melhor do que o anterior. Nós estamos
assustados: ‘progresso’, para nós, significa uma constante ameaça de ser
chutado para fora de um carro em aceleração”, afirma. Em entrevista à ISTOÉ,
por e-mail, o professor emérito das universidades de Leeds, no Reino Unido, e
de Varsóvia, na Polônia, falou também sobre temas que começou a estudar
recentemente, mas são muito caros aos brasileiros: tráfico de drogas, favelas e
violência policial.
ISTOÉ
-
O que caracteriza a
“modernidade líquida”?
ZYGMUNT
BAUMAN -
Líquidos mudam de
forma muito rapidamente, sob a menor pressão. Na verdade, são incapazes de
manter a mesma forma por muito tempo. No atual estágio “líquido” da
modernidade, os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem. A
temperatura elevada — ou seja, o impulso de transgredir, de substituir, de
acelerar a circulação de mercadorias rentáveis — não dá ao fluxo uma
oportunidade de abrandar, nem o tempo necessário para condensar e
solidificar-se em formas estáveis, com uma maior expectativa de vida.
ISTOÉ
-
As pessoas estão
conscientes dessa situação?
ZYGMUNT
BAUMAN -
Acredito que todos
estamos cientes disso, num grau ou outro. Pelo menos às vezes, quando uma
catástrofe, natural ou provocada pelo homem, torna impossível ignorar as
falhas. Portanto, não é uma questão de “abrir os olhos”. O verdadeiro problema
é: quem é capaz de fazer o que deve ser feito para evitar o desastre que já
podemos prever? O problema não é a nossa falta de conhecimento, mas a falta de
um agente capaz de fazer o que o conhecimento nos diz ser necessário fazer, e
urgentemente. Por exemplo: estamos todos conscientes das conseqüências
apocalípticas do aquecimento do planeta. E todos estamos conscientes de que os
recursos planetários serão incapazes de sustentar a nossa filosofia e prática
de “crescimento econômico infinito” e de crescimento infinito do consumo.
Sabemos que esses recursos estão rapidamente se aproximando de seu esgotamento.
Estamos conscientes — mas e daí? Há poucos (ou nenhum) sinais de que, de
própria vontade, estamos caminhando para mudar as formas de vida que estão na
origem de todos esses problemas.
ISTOÉ
-
A atual crise
financeira tem potencial para mudar a forma como vivemos?
ZYGMUNT
BAUMAN -
Pode ter ou não.
Primeiramente, a crise está longe de terminar. Ainda veremos suas conseqüências
de longo prazo (um grande desemprego, entre outras). Em segundo lugar, as
reações à crise não foram até agora animadoras. A resposta quase unânime dos
governos foi de recapitalizar os bancos, para voltar ao “normal”. Mas foi
precisamente esse “normal” o responsável pela atual crise. Essa reação
significa armazenar problemas para o futuro. Mas a crise pode nos obrigar a
mudar a maneira como vivemos. A recapitalização dos bancos e instituições de
crédito resultou em dívidas públicas altíssimas, que precisão ser pagas pelos
nossos filhos e netos — e isso pode empobrecer as próximas gerações. As dívidas
exorbitantes podem levar a uma considerável redistribuição da riqueza. São os
países ricos agora os mais endividados. De qualquer forma, não são as crises
que mudam o mundo, e sim nossa reação a elas.
ISTOÉ
-
Ao se conectarem ao
mundo pela internet, as pessoas estariam se desconectando da sua própria
realidade?
ZYGMUNT
BAUMAN -
Os contatos online
têm uma vantagem sobre os offline: são mais fáceis e menos arriscados — o que
muita gente acha atraente. Eles tornam mais fácil se conectar e se desconectar.
Casos as coisas fiquem “quentes” demais para o conforto, você pode simplesmente
desligar, sem necessidade de explicações complexas, sem inventar desculpas, sem
censuras ou culpa. Atrás do seu laptop ou iPhone, com fones no ouvido, você
pode se cortar fora dos desconfortos do mundo offline. Mas não há almoços
grátis, como diz um provérbio inglês: se você ganha algo, perde alguma coisa.
Entre as coisas perdidas estão as habilidades necessárias para estabelecer
relações de confiança, as para o que der vier, na saúde ou na tristeza, com
outras pessoas. Relações cujos encantos você nunca conhecerá a menos que
pratique. O problema é que, quanto mais você busca fugir dos inconvenientes da
vida offline, maior será a tendência a se desconectar.
ISTOÉ
-
E o que o senhor
chama de “amor líquido”?
ZYGMUNT
BAUMAN -
Amor líquido é um
amor “até segundo aviso”, o amor a partir do padrão dos bens de consumo:
mantenha-os enquanto eles te trouxerem satisfação e os substitua por outros que
prometem ainda mais satisfação. O amor com um espectro de eliminação imediata
e, assim, também de ansiedade permanente, pairando acima dele. Na sua forma
“líquida”, o amor tenta substituir a qualidade por quantidade — mas isso nunca
pode ser feito, como seus praticantes mais cedo ou mais tarde acabam
percebendo. É bom lembrar que o amor não é um “objeto encontrado”, mas um
produto de um longo e muitas vezes difícil esforço e de boa vontade.
ISTOÉ
-
Nesse contexto, ainda
faz sentido sonhar com um relacionamento estável e duradouro?
ZYGMUNT
BAUMAN -
Ambos os tipos de
relacionamento têm suas próprias vantagens e riscos. Em um mundo “líquido”, em
rápida mutação, “compromissos para a vida” podem se revelar como sendo
promessas que não podem ser cumpridas — deixando de serem algo valioso para
virarem dificuldades. O legado do passado, afinal, é a restrição mais grave que
a vida pode impor à liberdade de escolha. Mas, por outro lado, como se pode
lutar contra as adversidades do destino sozinho, sem a ajuda de amigos fiéis e
dedicados, sem um companheiro de vida, pronto para compartilhar os altos e
baixo? Nenhuma das duas variedades de relação é infalível. Mas a vida também
não o é. Além disso, o valor de um relacionamento é medido não só pelo que ele
oferece a você, mas também pelo que oferece aos seus parceiros. O melhor
relacionamento imaginável é aquele em que ambos os parceiros praticam essa
verdade.
ISTOÉ
-
O que explicaria o
crescimento do consumo de antidepressivos?
ZYGMUNT
BAUMAN -
Você colocou o dedo
em um dos muitos sintomas da nossa crescente intolerância ao sofrimento – na
verdade, uma intolerância a cada desconforto ou mesmo ligeira inconveniência.
Em uma vida regulada por mercados consumidores, as pessoas passaram a acreditar
que, para cada problema, há uma solução. E que esta solução pode ser comprada
na loja. Que a tarefa do doente não é tanto usar sua habilidade para superar a
dificuldade, mas para encontrar a loja certa que venda o produto certo que irá
superar a dificuldade em seu lugar. Não foi provado que essa nova atitude
diminui nossas dores. Mas foi provado, além de qualquer dúvida razoável, que a
nossa induzida intolerância à dor é uma fonte inesgotável de lucros comerciais.
Por essa razão, podemos esperar que essa nossa intolerância se agrave ainda
mais, em vez de ser atenuada.
ISTOÉ
-
E a obsessão pelo
corpo perfeito?
ZYGMUNT
BAUMAN -
Não é o ideal de
perfeição que lubrifica as engrenagens da indústria de cosméticos, mas o desejo
de melhorar. E isso significa seguir a moda atual. Todos os aspectos da
aparência corporal são, atualmente, objetos da moda, não apenas o cabelo ou a
cor dos lábios, mas os tamanhos dos quadris ou dos seios. A “perfeição”
significaria um fim a outras “melhorias”. Na cirurgia plástica, são oferecidos
aos clientes cartões de “fidelidade”, garantindo um desconto nas sucessivas
cirurgias que eles certamente irão realizar. Assim como a indústria de
celebridades, a indústria cosmética não tem limites e a demanda por seus
serviços pode, a princípio, se expandir infinitamente.
ISTOÉ
-
O que está por trás
desse culto às celebridades?
ZYGMUNT
BAUMAN -
Não é só uma questão
de candidatos a celebridades e seu desejo por notoriedade. O que também é uma
questão é que o “grande público” precisa de celebridades, de pessoas que
estejam no centro das atenções. Pessoas que, na ausência de autoridades
confiáveis, líderes, guias, professores, se oferecem como exemplos. Diante do
enfraquecimento das comunidades, essas pessoas fornecem “assuntos-chave” em torno
dos quais as quase-comunidades, mesmo que apenas por um breve momento, se
condensam —para desmoronar logo depois e se recondensar em torno de outras
celebridades momentâneas. É por isso que a indústria de celebridades está
garantida contra todas as depressões econômicas.
ISTOÉ
-
Como fica o futuro
nesse contexto de constantes mudanças?
ZYGMUNT
BAUMAN -
Nossos ancestrais
eram esperançosos: quando falavam de "progresso", se referiam à
perspectiva de cada dia ser melhor do que o anterior. Nós estamos assustados:
“progresso”, para nós, significa uma constante ameaça de ser chutado para fora
de um carro em aceleração. De não descer ou embarcar a tempo. De não estar
atualizado com a nova moda. De não abandonar rapidamente o suficiente
habilidades e hábitos ultrapassados e de falhar ao desenvolver as novas
habilidades e hábitos que os substituem. Além disso, ocupamos um mundo pautado
pelo “agora”, que promete satisfações imediatas e ridiculariza todos os atrasos
e esforços a longo prazo. Em um mundo composto de “agoras”, de momentos e
episódios breves, não há espaço para a preocupação com “futuro”. Como diz um outro
provérbio inglês: “Vamos cruzar essa ponte quando chegarmos a ela”. Mas quem
pode dizer quando (e se) chegar e em que ponte?
ISTOÉ
-
Há cinco anos, a
polícia de Londres matou o brasileiro Jean Charles de Menezes, alegando tê-lo
confundido com um terrorista. Por que o mundo está tão paranóico com segurança?
ZYGMUNT
BAUMAN -
Essa obsessão e a
nossa gestão dos assuntos globais, responsável por reforçá-la, constituem a
ameaça mais terrível à nossa segurança. O fantástico crescimento das
“indústrias de segurança”, juntamente com a crescente suspeita de perigo que
ela evoca, são motivos para antever uma piora das coisas. Se não por qualquer outro
motivo, então porque, na lógica das armas de fogo, uma vez carregadas, em algum
elas deverão ser descarregadas.
ISTOÉ
-
No Brasil, a
violência é uma questão especialmente preocupante. Como o sr. enxerga isso?
ZYGMUNT
BAUMAN -
Para começar, as favelas
servem como uma lixeira para um número enorme de pessoas tornadas
desnecessárias em partes do País onde suas fontes tradicionais de sustento
foram destruídas — para quem o Estado não tinha nada a oferecer nem um plano de
futuro. Mesmo que não declararem isso abertamente, as agências estatais devem
estar felizes pelo fato de o povo nas favelas tomar os problemas em suas
próprias mãos. Por exemplo, ao construir seus barracos rapidamente e de
qualquer forma, usando materiais instáveis, encontrados ou roubados, na
ausência de habitações planejadas e construídas pelas autoridades estaduais ou
municipais para acomodá-los.
ISTOÉ
-
Essa ausência do
Estado abriu espaço para os traficantes. O combate às quadrilhas às vezes é
usado com justificativa para excessos da polícia. Por que tanta violência?
ZYGMUNT
BAUMAN -
As relações entre a
polícia e as empresas de tráfico de drogas são, na apropriada expressão de
Bernardo Sorj (sociólogo brasileiro, professor da Universidade Federal do Rio),
“nem de guerra nem de paz”. Esse amor e ódio entre as duas principais agências
de terror aumenta o estigma da favela como o local da violência genocida. Ao
mesmo tempo, porém, também contribui para a “funcionalidade” das favelas na
manutenção do atual sistema de poder no Brasil. A polícia brasileira tem um
longo histórico de tratamento brutal aos pobres, anterior à proliferação
relativamente recente das favelas. A brutalidade da polícia é mesmo para ser
espetacular. Como não é particularmente bem sucedida no combate à criminalidade
e à corrupção, a polícia, para convencer a população de seu potencial
coercitivo, deve assustá-la e coagi-la a ser passivamente obediente.
ISTOÉ
-
O sr. vê uma solução?
ZYGMUNT
BAUMAN -
Algo está sendo
feito, mesmo que, até agora, não seja suficiente para cortar um nó firmemente
amarrado por décadas, senão séculos. Um exemplo é o Viva Rio (ONG que atua
contra a violência). Pequenos passos, talvez, sopros não fortes o suficiente
para romper a armadura do ressentimento mútuo e indiferença moral de anos entre
“morro” e “asfalto” no Rio. Mas a escolha é, afinal, entre erguer paredes de
pedra e aço ou o desmantelamento de cercas espirituais.
ISTOÉ
-
O que o sr. diria ao
jovens?
ZYGMUNT
BAUMAN -
Eu desejo que os
jovens percebam razoavelmente cedo que há tanto significado na vida quando eles
conseguem adicionar isso a ela através de esforço e dedicação. Que a árdua
tarefa de compor uma vida não pode ser reduzida a adicionar episódios
agradáveis. A vida é maior que a soma de seus momentos.
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